Sob Constante Ameaça
Shaun Gladwell |
A festejada modernidade, responsável por impulsionar o desenvolvimento do Ocidente desde a Revolução Industrial, foi incapaz de frear os instintos nefastos de sociedades econômica e culturalmente desiguais, cujas práticas políticas destituídas de valores humanistas sólidos permaneceram carregadas da selvageria típica do mundo pré-moderno. Nem mesmo o avanço científico, iluminado pelo discurso republicano, resultou num mundo tão mais estável quanto democrático, maduro politicamente, pouco suscetível aos reveses econômicos e menos vulnerável às vicissitudes da natureza. Sob o signo do medo, atravessamos o último milênio acossados pelo terrorismo, impactados pelas tsunamis, atordoados pelo disparo de mísseis, desestabilizados pelas bolsas de valores e confrontados com imagens da barbárie.
Neste contexto, o debate sobre a segurança, longe de estar confinado aos domínios do Estado e a seu monopólio sobre o uso da força - quer seja através de suas instâncias de controle e garantia do bem-estar social ou de suas “instituições totais” (M. Foucault): hospitais, prisões, manicômios -, remete à primitiva condição humana de desamparo e grande fragilidade ante a noção de um perigo real ou imaginário, de uma ameaça: susto e terror frente ao desconhecido. O medo, reação a toda a sorte de inseguranças que, em maior ou menor escala, experimentamos ao longo da vida, tornou-se, nas sociedades contemporâneas, um sentimento desconfortavelmente familiar, contra o qual lutamos lançando mão de um sem-fim de aparatos bélicos, de uma extensa parafernália tecnológica e dos mais variados expedientes de proteção: são ogivas nucleares, armas biológicas, câmeras de vigilância, carros-blindados, sistemas de alarme, antiansiolíticos, senhas bancárias, seguros de vida, de desemprego, contra incêndio, entre tantos outros.
As guerras, o terrorismo, o crime organizado e a violência urbana são apenas as mais evidentes facetas de uma ampla problemática política, econômica e social, a qual se desdobra em sintomas bem menos tangíveis, de ordem psíquica ou caráter individual, cujas raízes se revelam tanto a partir do preconceito de classe, da intolerância religiosa, de gênero ou racial, quanto através das fobias sociais, da busca por ambientes domésticos seguros (comfort zones) ou dos relacionamentos virtuais como estratégia de preservação da integridade física.
O Medo e o Totalitarismo
Se o temido Leviatã de Thomas Hobbes – monstro-síntese do contrato social – não foi por completo eficaz como antídoto ao estado de natureza e sua “guerra de todos contra todos” (1974:82), pouco surpreende que a civilização a construir o Estado Democrático de Direito também tenha sido aquela a perpetrar o holocausto nazista.
O clima de horror absoluto a imperar na Alemanha pré-segunda guerra foi evidenciado através da locução em off numa das cenas d’O Ovo da Serpente (1977, EUA), filme dirigido por Ingmar Bergman que, ao abordar a gênese e ascensão do fascismo, antecipa a tragédia sem precedentes prestes a eclodir:
cena de "O Ovo da Serpente" - Ingmar Bergman
Em pleno século XXI, o medo permanece uma arma poderosa contra os princípios de liberté, égalité, fraternité, haja vista o ataque terrorista às Torres Gêmeas em 11 de setembro, em Nova Iorque, e seus insidiosos efeitos sobre as liberdades individuais. A suspensão de direitos assegurados pela constituição norte-americana através da Lei Patriótica - que concedeu poderes extraordinários aos órgãos de segurança, permitindo mapeamentos raciais e étnicos, além do monitoramento das rotinas do cidadão comum -, despertou um profundo sentimento de paranoia entre a população dos Estados Unidos.
Os Meios de Comunicação de Massa e o Poder Simbólico
Tempestade no Deserto |
Batizada Tempestade no Deserto, a operação deflagrada na Guerra do Golfo, em 1990, foi a primeira de uma série de investidas militares norte-americanas no Oriente Médio, uma zona culturalmente conturbada desde a primeira grande guerra, cujas reservas de petróleo são emblemáticas não apenas de uma batalha política, mas do esgotamento de um modelo econômico sustentado pelo uso de energias fósseis não renováveis. Primeiro conflito bélico televisionado em tempo real, o massacre de mais de cem mil soldados iraquianos obteve repercussão internacional através da rede americana CNN, numa cobertura jornalística tão contaminada pelo parti pris que emulava a lógica de um videogame yankee.
Hitler e Leni Rieffensthal |
Ao se debruçar sobre os sofisticados mecanismos de dominação cultural que caracterizam as relações políticas, o sociólogo francês Pierre Bourdieu vai além e conclui que:
“É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os <<sistemas simbólicos>> cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a <<domesticação dos dominados>> [...]
[...] o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” (P. Bourdieu, 2011:8, 11, 14)
Portanto, vale frisar que este “poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.” (P. Bourdieu, 2011:8, 11, 14)
Com efeito, a chegada do homem à Lua em 20 de julho de 1969, transmitida pela televisão, acirraria os ânimos de russos e norte-americanos na corrida espacial. A célebre frase do astronauta Neil Armstrong “um pequeno passo para um grande homem, um salto gigante para a humanidade” daria a tônica à escalada tecnológica que bem caracterizou a Guerra Fria e sua mais sórdida corrida: a armamentista. Ao arsenal de armas simbólicas engendradas pela mídia, somaram-se as químicas e biológicas, e a descoberta da bomba nuclear, cuja receita roubada dos norte-americanos pelo casal de espiões russos Julius e Ethel Rosenberg só fez recrudescer o risco real de embate entre as duas superpotências.
O imaginário da época foi de tal modo permeado pela ameaça nuclear e pelo totalitarismo que tanto a literatura quanto o cinema souberam explorar o fértil terreno das fobias em uma série de obras ainda hoje emblemáticas da atmosfera de hostilidade e perigo na qual estiveram envoltos os anos que se seguiram ao grande conflito armado mundial.
cena de "1984" - direção de Michael Radford. |
panóptico |
A Sociedade de Controle
No centro de Hong Kong, um serial killer e um senador com sua amante são simultaneamente fotografados ao chegar no lobby de um arranha-céu; enquanto isso, nas ruas de NY, a mesma câmera de segurança que registrara dois homens fazendo sexo na noite anterior, acusa agora o trágico atropelamento de uma criança com síndrome de dawn; bem longe dali, num shopping center em Dubai, o mesmo cartão de crédito que monitora os gastos de uma prostituta russa para uma empresa de marketing multinacional, revela o destino secreto de um exilado político a agentes do FBI. Como que extraída de um filme, a sequência acima descrita ilustra a complexidade da rede de informações e a velocidade com que as imagens são capturadas, produzindo evidências que, no limite, se verdadeiras fossem, bem poderiam levar a um golpe de Estado.
A revolução tecnológica em marcha nas últimas décadas não só amplia substancialmente o aparato de controle institucional disponível como torna extremamente difusa a ação destes mecanismos, lançando a mais singela rotina doméstica numa zona cinza onde as noções de privacidade concorrem com motivações de segurança pública, tornando o medo uma reação psíquica recorrente na contemporaneidade.
Por outro lado, alguns episódios recentes apontam uma realidade nada distante da ficção. Ao passo em que ataques terroristas são transmitidos ao vivo em cadeia internacional de televisão e informações falsas apuradas pelo serviço de inteligência britânico detonam a invasão do Iraque, dados confidenciais do governo americano vazam na Internet pondo em xeque a estabilidade econômica mundial. Neste intrincado tabuleiro onde o wikileaks, o blog de celebridades hollywoodianas e o twitter do presidente Obama disputam o próximo furo jornalístico em pé de igualdade com correspondentes de guerra, analistas econômicos e agências de notícias, imagens cuja repercussão política vai além da mera cobertura de imprensa são espalhadas pelo mundo em fração de segundos, conferindo credibilidade a eventos espúrios, adulterando o teor da informação e impactando nossa própria percepção sobre os acontecimentos.
Assim, o filósofo francês Gilles Deleuze argumenta que “a sociedade de controle tem como estratégia fundamental esvaziar a imagem da sua virtualidade, para a tornar pura informação, parte dos dispositivos de vigilância e monitoração. (Deleuze, 1992: 198)
Yasujiro Ozu dirigindo Chishu Ryu e Setsuko Hara em Tokyo Story |
[...] Por exemplo, o instante do acidente mais brutal se confunde com a imensidão do tempo vazio onde o vemos advir, nós, espectadores do que ainda não é, imersos num longuíssimo suspense. O acontecimento mais ordinário faz de nós um vidente, ao passo que a mídia nos transforma em simples olheiros passivos, no pior dos casos em voyeurs [...]
[...] É a arte, não a mídia, que pode captar o acontecimento: por exemplo, o cinema capta o acontecimento, com Ozu, com Antonioni. Mas justamente, neles o tempo morto não está entre dois acontecimentos, ele está no próprio acontecimento, ele constitui sua espessura” (Deleuze, 1992: 198, 199).
A Arte e a Mídia
Se, por um lado, os meios de comunicação de massa tem o condão de subtrair a virtualidade das imagens, isto é, de relativizar seu potencial semântico, por outro, é justamente no repertório visual e no imaginário midiáticos que a arte vai buscar subsídios para a construção de uma linguagem própria, a qual redimensiona o papel da imagem na articulação de um discurso político.
Romain Gravas - M.I.A. Born Free |
Ao decidir veicular tal natureza de conteúdo através de mídias via de regra utilizadas para outros fins, a saber, aqueles estritamente publicitários, Gavras estaria reacendendo, ainda que às avessas, a discussão de Marshall McLuhan sobre o meio ser a mensagem. Uma vez que o discurso altamente político de Born Free seria incompatível com uma peça de videoclipe, a opção por esta mídia constituiria em si uma escolha ideológica.
Inimigo Invisível (2011), vídeo de Guilherme Peters que reproduz o ponto de vista de um jogador de videogame, apresenta um soldado pelas costas, de metralhadora em punho, movendo-se pelos corredores sombrios de uma arquitetura labiríntica. À medida que ele avança, errante, fazendo crescer a expectativa de que o inimigo irrompa na escuridão, frustra-se o espectador ao constatar que nada acontece no “jogo”, salvo a monotonia desta não-ação.
Ao simular um videogame pelo seu avesso, isto é, eliminando as batalhas e as mortes, o artista esvazia o conteúdo belicista tão característico desses produtos audiovisuais de entretenimento, suscitando o debate acerca dos rituais de violência aos quais somos submetidos desde a infância. Ao reiterar, a cada novo movimento em falso do soldado, a existência de uma fonte permanente de risco, ainda que seja invisível, a obra evidencia o caráter onipresente do medo.
Skip Arnold - Marks |
Entretanto, na ausência de uma ameaça real, o corpo do artista constitui seu próprio inimigo, como que em movimento de violência involuntária contra si mesmo. Ao submeter-se a tal experiência, fisicamente excruciante, que somente termina quando seu corpo colapsa, o artista leva a ação performática ao limite, evidenciando o caráter evanescente do registro audiovisual.
Guerra e Paz
Na era da informação, imagens atravessam o planeta em questão de segundos, precipitando crises econômicas, insuflando guerras civis ou denunciando desastres ambientais. A elas coube a tarefa de dar corpo e face ao Frankenstein midiático contemporâneo, espelho de um mundo tão globalizado quanto desigual.
Ao avanço científico sem precedentes, somou-se a ausência absoluta de referenciais ideológicos, resultando em uma civilização tão dependente dos meios de comunicação de massa quanto incapaz de interpretar suas informações. Realidade e ficção sobrepõe-se, transformadas numa coisa só, amalgamadas numa mesma imagem.
Sob constante ameaça, vivemos em permanente estado de alerta, a espera de novas notícias, aguardando o perigo iminente. Neste contexto imediatista, afetado pelo crescente volume de informações, a produção artística, na contramão do açodamento intelectual, revela-se um importante instrumento de reflexão sobre o status da imagem e seu poder de representação na contemporaneidade.
bernardo josé de souza
coordenador de cinema, vídeo e fotografia
secretaria municipal da cultura
prefeitura de porto alegre
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