Texto de Apresentação

                                                                                                                      
  Sob Constante Ameaça

Shaun Gladwell
Cenário de muitas e ambiciosas revoluções, o “curto século XX” (Eric Hobsbawn) foi marcado por uma sucessão de eventos atrozes: teve início em 1914, com a primeira Grande Guerra, e foi abreviado em 1991, com o colapso da URSS, sinalizando assim o fim da Guerra Fria; no curso de sua longa e conflagrada trajetória, jamais havia a humanidade experimentado tamanha derrama de sangue em tão exíguo espaço de tempo. De lá para cá, incessantes conflitos bélicos vem marcando de maneira cruel e indelével nossa história recente, em particular a do Oriente Médio, a da Europa Oriental e a do continente Africano, haja vista o insolúvel conflito entre Israel e Palestina, a ultratecnológica guerra do Golfo, o brutal genocídio na Sérvia, a obtusa invasão do Iraque e os recentes movimentos revolucionários que configuraram a chamada Primavera Árabe, para não falar das inúmeras e esparsas guerras civis a irromper de maneira intermitente sobre a superfície do globo terrestre.

A festejada modernidade, responsável por impulsionar o desenvolvimento do Ocidente desde a Revolução Industrial, foi incapaz de frear os instintos nefastos de sociedades econômica e culturalmente desiguais, cujas práticas políticas destituídas de valores humanistas sólidos permaneceram carregadas da selvageria típica do mundo pré-moderno. Nem mesmo o avanço científico, iluminado pelo discurso republicano, resultou num mundo tão mais estável quanto democrático, maduro politicamente, pouco suscetível aos reveses econômicos e menos vulnerável às vicissitudes da natureza. Sob o signo do medo, atravessamos o último milênio acossados pelo terrorismo, impactados pelas tsunamis, atordoados pelo disparo de mísseis, desestabilizados pelas bolsas de valores e confrontados com imagens da barbárie.
Neste contexto, o debate sobre a segurança, longe de estar confinado aos domínios do Estado e a seu monopólio sobre o uso da força - quer seja através de suas instâncias de controle e garantia do bem-estar social ou de suas “instituições totais” (M. Foucault): hospitais, prisões, manicômios -, remete à primitiva condição humana de desamparo e grande fragilidade ante a noção de um perigo real ou imaginário, de uma ameaça: susto e terror frente ao desconhecido. O medo, reação a toda a sorte de inseguranças que, em maior ou menor escala, experimentamos ao longo da vida, tornou-se, nas sociedades contemporâneas, um sentimento desconfortavelmente familiar, contra o qual lutamos lançando mão de um sem-fim de aparatos bélicos, de uma extensa parafernália tecnológica e dos mais variados expedientes de proteção: são ogivas nucleares, armas biológicas, câmeras de vigilância, carros-blindados, sistemas de alarme, antiansiolíticos, senhas bancárias, seguros de vida, de desemprego, contra incêndio, entre tantos outros.
As guerras, o terrorismo, o crime organizado e a violência urbana são apenas as mais evidentes facetas de uma ampla problemática política, econômica e social, a qual se desdobra em sintomas bem menos tangíveis, de ordem psíquica ou caráter individual, cujas raízes se revelam tanto a partir do preconceito de classe, da intolerância religiosa, de gênero ou racial, quanto através das fobias sociais, da busca por ambientes domésticos seguros (comfort zones) ou dos relacionamentos virtuais como estratégia de preservação da integridade física.

O Medo e o Totalitarismo

Se o temido Leviatã de Thomas Hobbes – monstro-síntese do contrato social – não foi por completo eficaz como antídoto ao estado de natureza e sua “guerra de todos contra todos” (1974:82), pouco surpreende que a civilização a construir o Estado Democrático de Direito também tenha sido aquela a perpetrar o holocausto nazista.
O clima de horror absoluto a imperar na Alemanha pré-segunda guerra foi evidenciado através da locução em off numa das cenas d’O Ovo da Serpente (1977, EUA), filme dirigido por Ingmar Bergman que, ao abordar a gênese e ascensão do fascismo, antecipa a tragédia sem precedentes prestes a eclodir:


cena de "O Ovo da Serpente" - Ingmar Bergman

"Terça-feira, 6 de novembro. Os jornais estão enegrecidos pelo medo, ameaças e rumores. O governo parece impotente. Um confronto entre os partidos parece ser inevitável. Apesar de tudo isso, as pessoas vão trabalhar, a chuva nunca para, e o medo cresce como o vapor que emana das pedras. Pode ser sentido como um cheiro penetrante. Todos o suportam como um veneno, um veneno de efeito lento, que se percebe apenas no pulso acelerado ou como um espasmo de náusea.”   
Em pleno século XXI, o medo permanece uma arma poderosa contra os princípios de liberté, égalité, fraternité, haja vista o ataque terrorista às Torres Gêmeas em 11 de setembro, em Nova Iorque, e seus insidiosos efeitos sobre as liberdades individuais. A suspensão de direitos assegurados pela constituição norte-americana através da Lei Patriótica - que concedeu poderes extraordinários aos órgãos de segurança, permitindo mapeamentos raciais e étnicos, além do monitoramento das rotinas do cidadão comum -, despertou um profundo sentimento de paranoia entre a população dos Estados Unidos.
Sofrendo abalos sistemáticos em um mundo que, ao superar o fantasma comunista, acabou por abandonar suas mais caras utopias de transformação social, a democracia viu prosperar um projeto econômico altamente excludente, cujos vícios políticos revelaram-se semelhantes àqueles combatidos nos regimes totalitários, isto é, corrupção e concentração de renda nas altas esferas do poder. Na ausência de um inimigo comum, a sociedade ocidental que emergiu vis-à-vis à queda do muro de Berlim em 1989 adotou sem ressalvas o regime capitalista e prontamente nomeou seus mais novos fantasmas: a partir de então, árabes e muçulmanos passaram a encarnar a face contemporânea do mal.


Os Meios de Comunicação de Massa e o Poder Simbólico


Tempestade no Deserto

Batizada Tempestade no Deserto, a operação deflagrada na Guerra do Golfo, em 1990, foi a primeira de uma série de investidas militares norte-americanas no Oriente Médio, uma zona culturalmente conturbada desde a primeira grande guerra, cujas reservas de petróleo são emblemáticas não apenas de uma batalha política, mas do esgotamento de um modelo econômico sustentado pelo uso de energias fósseis não renováveis. Primeiro conflito bélico televisionado em tempo real, o massacre de mais de cem mil soldados iraquianos obteve repercussão internacional através da rede americana CNN, numa cobertura jornalística tão contaminada pelo parti pris que emulava a lógica de um videogame yankee.




Hitler e Leni Rieffensthal 
Já na Segunda Guerra Mundial, o regime nazista de Adolf Hitler identificara o cinema como um poderoso “Aparelho Ideológico de Estado” (Louis Althusser, 1999:101) – o qual foi utilizado com notável sucesso por seu ministro da propaganda Joseph Goebbels e pela diretora Leni Rieffensthal -; a partir da década de 1950, entretanto, especialmente através da televisão, os meios de comunicação de massa só fizeram expandir as possibilidades de dominação cultural das nações hegemônicas, notabilizando-se como veículos ideais para o exercício do “soft power”, – segundo o cientista político Joseph Nye (2004:15), este poder não se exerce através da força, mas, a exemplo de Hollywood e da Internet, constitui uma arma tão robusta para os Estados Unidos em matéria geopolítica quanto o seu mais que temido poderio militar.

Ao se debruçar sobre os sofisticados mecanismos de dominação cultural que caracterizam as relações políticas, o sociólogo francês Pierre Bourdieu vai além e conclui que:
“É enquanto instrumentos estruturados e estruturantes de comunicação e de conhecimento que os <<sistemas simbólicos>> cumprem a sua função política de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação, que contribuem para assegurar a dominação de uma classe sobre outra (violência simbólica) dando o reforço da sua própria força às relações de força que as fundamentam e contribuindo assim, segundo a expressão de Weber, para a <<domesticação dos dominados>> [...]
[...] o poder simbólico é, com efeito, esse poder invisível o qual só pode ser exercido com a cumplicidade daqueles que não querem saber que lhe estão sujeitos ou mesmo que o exercem.” (P. Bourdieu, 2011:8, 11, 14)
Portanto, vale frisar que este “poder quase mágico que permite obter o equivalente daquilo que é obtido pela força (física ou econômica), graças ao efeito específico de mobilização, só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário.” (P. Bourdieu, 2011:8, 11, 14)

Com efeito, a chegada do homem à Lua em 20 de julho de 1969, transmitida pela televisão, acirraria os ânimos de russos e norte-americanos na corrida espacial. A célebre frase do astronauta Neil Armstrong “um pequeno passo para um grande homem, um salto gigante para a humanidade” daria a tônica à escalada tecnológica que bem caracterizou a Guerra Fria e sua mais sórdida corrida: a armamentista. Ao arsenal de armas simbólicas engendradas pela mídia, somaram-se as químicas e biológicas, e a descoberta da bomba nuclear, cuja receita roubada dos norte-americanos pelo casal de espiões russos Julius e Ethel Rosenberg só fez recrudescer o risco real de embate entre as duas superpotências.

O imaginário da época foi de tal modo permeado pela ameaça nuclear e pelo totalitarismo que tanto a literatura quanto o cinema souberam explorar o fértil terreno das fobias em uma série de obras ainda hoje emblemáticas da atmosfera de hostilidade e perigo na qual estiveram envoltos os anos que se seguiram ao grande conflito armado mundial.

cena de "1984" - direção de  Michael Radford.
O romance de ficção científica 1984, escrito por George Orwell em 1948 e posteriormente transformado em filme, nos apresenta uma sociedade vigiada, na qual o medo desempenha papel estruturante, pautando a existência de homens e mulheres submetidos ao jugo do Estado. Reféns do Big Brother, instância maior de vigilância constante - espécie de panóptico benthaniano (ver imagem) cuja função é “induzir um estado consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento autoritário do poder” (M. Foucault, 1997:166) -, os personagens do livro se veem obrigados a abrir mão da privacidade, e o que é mais grave, de suas próprias vidas afetivas, em nome da adesão a um governo ditatorial que tem por prática e missão, respectivamente, reescrever as notícias do passado e forjar uma nova língua cuja estrutura semântica impediria manifestações contrárias ao regime.


panóptico
A passagem da “sociedade disciplinar” (1997:166) concebida por Michel Foucault - que encontra na lógica do confinamento seu mais sofisticado expediente - para aquela ora em curso na contemporaneidade, cujos mecanismos de controle são invisíveis e onipresentes, abre caminho à discussão deleuziana sobre a virtualidade dos sistemas de vigilância e os dispositivos de poder no âmbito das esferas públicas e privadas. Uma vez que a vigilância revelou-se mais eficaz que a punição, e esta premissa foi introjetada pela sociedade, prescindindo dos aspectos arquiteturais para ser levado a termo – a saber, a escola, o hospital, a prisão etc. -, os indivíduos passaram a estar permanentemente sob efeito disciplinar, mesmo na ausência física da autoridade.



A Sociedade de Controle

No centro de Hong Kong, um serial killer e um senador com sua amante são simultaneamente fotografados ao chegar no lobby de um arranha-céu; enquanto isso, nas ruas de NY, a mesma câmera de segurança que registrara dois homens fazendo sexo na noite anterior, acusa agora o trágico atropelamento de uma criança com síndrome de dawn; bem longe dali, num shopping center em Dubai, o mesmo cartão de crédito que monitora os gastos de uma prostituta russa para uma empresa de marketing multinacional, revela o destino secreto de um exilado político a agentes do FBI. Como que extraída de um filme, a sequência acima descrita ilustra a complexidade da rede de informações e a velocidade com que as imagens são capturadas, produzindo evidências que, no limite, se verdadeiras fossem, bem poderiam levar a um golpe de Estado.

A revolução tecnológica em marcha nas últimas décadas não só amplia substancialmente o aparato de controle institucional disponível como torna extremamente difusa a ação destes mecanismos, lançando a mais singela rotina doméstica numa zona cinza onde as noções de privacidade concorrem com motivações de segurança pública, tornando o medo uma reação psíquica recorrente na contemporaneidade.
Por outro lado, alguns episódios recentes apontam uma realidade nada distante da ficção. Ao passo em que ataques terroristas são transmitidos ao vivo em cadeia internacional de televisão e informações falsas apuradas pelo serviço de inteligência britânico detonam a invasão do Iraque, dados confidenciais do governo americano vazam na Internet pondo em xeque a estabilidade econômica mundial. Neste intrincado tabuleiro onde o wikileaks, o blog de celebridades hollywoodianas e o twitter do presidente Obama disputam o próximo furo jornalístico em pé de igualdade com correspondentes de guerra, analistas econômicos e agências de notícias, imagens cuja repercussão política vai além da mera cobertura de imprensa são espalhadas pelo mundo em fração de segundos, conferindo credibilidade a eventos espúrios, adulterando o teor da informação e impactando nossa própria percepção sobre os acontecimentos.

Assim, o filósofo francês Gilles Deleuze argumenta que “a sociedade de controle tem como estratégia fundamental esvaziar a imagem da sua virtualidade, para a tornar pura informação, parte dos dispositivos de vigilância e monitoração. (Deleuze, 1992: 198)

Yasujiro Ozu dirigindo
Chishu Ryu e Setsuko Hara em Tokyo Story
“Ao atribuir à imagem a potencialidade da informação, deslocamos a abordagem do campo da representação, passamos a compreendê-la enquanto a própria expressão dos acontecimentos. [...]

[...] Por exemplo, o instante do acidente mais brutal se confunde com a imensidão do tempo vazio onde o vemos advir, nós, espectadores do que ainda não é, imersos num longuíssimo suspense. O acontecimento mais ordinário faz de nós um vidente, ao passo que a mídia nos transforma em simples olheiros passivos, no pior dos casos em voyeurs [...]

[...] É a arte, não a mídia, que pode captar o acontecimento: por exemplo, o cinema capta o acontecimento, com Ozu, com Antonioni. Mas justamente, neles o tempo morto não está entre dois acontecimentos, ele está no próprio acontecimento, ele constitui sua espessura” (Deleuze, 1992: 198, 199).  

A Arte e a Mídia

Se, por um lado, os meios de comunicação de massa tem o condão de subtrair a virtualidade das imagens, isto é, de relativizar seu potencial semântico, por outro, é justamente no repertório visual e no imaginário midiáticos que a arte vai buscar subsídios para a construção de uma linguagem própria, a qual redimensiona o papel da imagem na articulação de um discurso político.

Romain Gravas - M.I.A. Born Free
Realizado por Romain Gavras (filho do célebre diretor de cinema político Constantin Costa Gavras) para a banda britânica M.I.A, Born Free subverte a lógica do videoclipe ao apresentar uma sequência de imagens extremamente violenta, cujas cenas de forte teor político incendeiam o debate sobre a eugenia e a intolerância racial. Construído como um filme de ação, tanto em seu roteiro quanto em sua montagem, este vídeo sobre o extermínio de meninos ruivos foi objeto de censura, causando polêmica ao desafiar os padrões formais e conceituais da publicidade desenvolvida para a indústria fonográfica.
Ao decidir veicular tal natureza de conteúdo através de mídias via de regra utilizadas para outros fins, a saber, aqueles estritamente publicitários, Gavras estaria reacendendo, ainda que às avessas, a discussão de Marshall McLuhan sobre o meio ser a mensagem. Uma vez que o discurso altamente político de Born Free seria incompatível com uma peça de videoclipe, a opção por esta mídia constituiria em si uma escolha ideológica.

Inimigo Invisível (2011), vídeo de Guilherme Peters que reproduz o ponto de vista de um jogador de videogame, apresenta um soldado pelas costas, de metralhadora em punho, movendo-se pelos corredores sombrios de uma arquitetura labiríntica. À medida que ele avança, errante, fazendo crescer a expectativa de que o inimigo irrompa na escuridão, frustra-se o espectador ao constatar que nada acontece no “jogo”, salvo a monotonia desta não-ação.
Ao simular um videogame pelo seu avesso, isto é, eliminando as batalhas e as mortes, o artista esvazia o conteúdo belicista tão característico desses produtos audiovisuais de entretenimento, suscitando o debate acerca dos rituais de violência aos quais somos submetidos desde a infância. Ao reiterar, a cada novo movimento em falso do soldado, a existência de uma fonte permanente de risco, ainda que seja invisível, a obra evidencia o caráter onipresente do medo.   

Skip Arnold - Marks
Já na obra Marks (1984), de Skip Arnold, o próprio artista é registrado em ação, arremetendo seu corpo contra as paredes de um quarto branco, vestindo apenas jeans, luvas de boxe e um capacete com a bandeira dos EUA. A performance desempenhada por Arnold, em luta imaginária com um inimigo fantasma, remete ao espírito belicoso dos norte-americanos, em constante posição de enfrentamento.
Entretanto, na ausência de uma ameaça real, o corpo do artista constitui seu próprio inimigo, como que em movimento de violência involuntária contra si mesmo. Ao submeter-se a tal experiência, fisicamente excruciante, que somente termina quando seu corpo colapsa, o artista leva a ação performática ao limite, evidenciando o caráter evanescente do registro audiovisual.



Guerra e Paz

Na era da informação, imagens atravessam o planeta em questão de segundos, precipitando crises econômicas, insuflando guerras civis ou denunciando desastres ambientais. A elas coube a tarefa de dar corpo e face ao Frankenstein midiático contemporâneo, espelho de um mundo tão globalizado quanto desigual.
Ao avanço científico sem precedentes, somou-se a ausência absoluta de referenciais ideológicos, resultando em uma civilização tão dependente dos meios de comunicação de massa quanto incapaz de interpretar suas informações. Realidade e ficção sobrepõe-se, transformadas numa coisa só, amalgamadas numa mesma imagem.
Sob constante ameaça, vivemos em permanente estado de alerta, a espera de novas notícias, aguardando o perigo iminente. Neste contexto imediatista, afetado pelo crescente volume de informações, a produção artística, na contramão do açodamento intelectual, revela-se um importante instrumento de reflexão sobre o status da imagem e seu poder de representação na contemporaneidade. 


bernardo josé de souza
coordenador de cinema, vídeo e fotografia
secretaria municipal da cultura
prefeitura de porto alegre

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